sexta-feira, 4 de setembro de 2015

Habacuque, o Filósofo


I - Nome e personalidade - Nada se sabe, realmente, a respeito de Habacuque, fora do livro que contém o seu nome. Às vezes até se duvida que o seu nome  seja originalmente um nome pessoal ou meramente uma designação simbólica (Comparar com o nome Malaquias). De todos os modos é uma forma singular e poderia haver-se derivado, se é que não foi tomado de empréstimo, da palavra assíria “hambkuku” (uma espécie de hortaliça) ou  da raiz “habkak”, cujo significado é “abrasar”. Também pode ser “alguém que luta com Deus”, ou “amado de Deus” ou ainda “consolador do seu povo”. Lutero aceitou esta etimologia, observando que “Habacuque tem um nome de  acordo como seu ofício. Porque significa um animador, ou um que toma o outro em seus braços e no coração, como se consola uma criança que chora, dizendo-lhe que se cale.” Como Ageu e Zacarias, Habacuque é chamado explicitamente “o profeta” (Hc. 1:1), o que pode dá a entender que foi um homem de Judá e um residente bem conhecido em Jerusalém e, portanto, intimamente familiarizado com a situação política local (Hc. 1:3-4). De todas as maneiras, há suficiente motivo para se crer que Habacuque tenha sido uma das grandes personalidades de sua época.
Não como um dos falsos profetas a quem Jeremias desejou a morte. Ele também poderia ter sido um membro importante da escola de Isaías, isto é, um discípulo deste (Isaías 8:16). É verdade que ele era um livre pensador entre os profetas e em certo sentido o pai da dúvida religiosa. Contudo, ele era também um homem de grande fé, precisamente o gênero de homem que Deus deseja comissionar para a inauguração de uma nova época na história da igreja. Ele deve ser identificado com a “sentinela” mencionada em Isaías 21:6, enviada em busca de sinais da queda de Babilônia. Ou como sugerem os rabinos judeus, com o filho da mulher sunamita que Eliseu ressuscitou (2 Reis 4:36-37), mas não podemos garantir. Mesmo assim, sabemos que o profeta era um filósofo sério e puro, dono de uma originalidade  e força moral incomuns. Que ele era sensível e especulativo.
O “suplicante” entre os profetas e um pregador do otimismo teocrático.
A tradição acrescenta muitos detalhes de nenhum valor a respeito dele, como por exemplo, a história de “Bel e o Dragão” (vs. 33-39) diz que ele levou uma sopa a Daniel, que havia sido atirado pela segunda vez à cova dos leões por Ciro, na Babilônia. Segundo o prefácio à mesma história no Códice Chisianus da Septuaginta, ele era um homem da tribo de Levi, enquanto na obra “Vidas dos Profetas”  ele pertencia à tribo de Simeão... O profeta teria fugido para o oeste de El-Arish, na costa Egípcia, tendo regressado à sua terra, onde faleceu antes do regresso dos judeus da Babilônia, em 536 a.C. Eusébio em seu onomástico acrescenta que no seu tempo o sepulcro de Habacuque era mostrado, tanto em Gabaah como em Keilah.
II - Propósito - O único propósito do profeta foi o de predizer a vindoura destruição dos caldeus e assim animar Judá no tempo da crise. Muito apropriadamente o livro começa com o título que descreve o seu caráter: “O peso que viu o profeta Habacuque” (Hc. 1:1). “A palavra ´peso´ [ou “burden” = carga na BKJ, ou “sentença” na ARA] prepara o leitor para uma “declaração solene, ou um juízo ameaçador ou uma sentença judicial contra algum inimigo estrangeiro”. Outros profetas em geral começavam expondo os pecados do seu próprio povo, tendo ficado a Habacuque o encargo de enfatizar a violência e os excessos cometidos pelos opressores de Judá - os caldeus.
III - Data - A data das profecias de Habacuque depende da identificação dos caldeus como os tiranos do seu tempo, mais exatamente ao tempo específico em que teria começado a sua carreira de conquistas (Hc. 1:6). Porque não há indicação no livro de que até então ele se houvesse intrometido nos assuntos de Judá. Muitas autoridades assinalam o ano de 604-603 a.C. Nínive havia caído em 606 ou possivelmente antes, por volta de 612 a.C. Nabucodonosor acabara de iniciar a sua célebre carreira de conquistas na Ásia Ocidental. Em Carquemis ele derrotou o Faraó Neco do Egito (605 a.C)  e essa vitória mudou a história daquela época. O Egito, que tanto havia molestado Judá, entre 608 e 605 a.C, foi, então, humilhado pelos conquistadores caldeus. Em Judá era grande a ansiedade. A reforma de Josias, em 621, havia sido provada como superficial. A destruição e violência eram perpetradas pelos caldeus nas nações em geral (Hc. 1:6,10,13; 2:5-6).  Judá não havia ainda sido invadida, mas o Líbano começara a sofrer (Hc. 2:17) e o inimigo estava cada vez mais próximo, trazendo uma tremenda insegurança à vida de Judá. Todas essas considerações reunidas  assinalam uma data pouco depois das batalha de Carquemis, ou cerca de 603 a.C. 
A tradição judaica atribui o livro ao tempo de Manassés. Outros lhe dão outras datas, sendo a última o ano 170 a.C. , no reinado de Antíoco IV. Contudo, a data que prevalece é 603 a.C, quando, ao que parece, ainda existia o primeiro templo.
IV - Análise e conteúdo - O livro começa com um diálogo entre Javé e o profeta e em seguida narra certos castigos que sobrevirão ao violento opressor da humanidade, concluindo com um lindo poema de confiança em que Deus há de livrar o seu povo.  Podemos facilmente dividi-lo em 6 partes distintas e características:
1. - A queixa do profeta - (Hc. 1:2-4) - a qual começa com um desesperado lamento: “Até quando, SENHOR, clamarei eu, e tu não me escutarás? Gritar-te-ei: Violência! e não salvarás? Por que razão me mostras a iniqüidade, e me fazes ver a opressão? Pois que a destruição e a violência estão diante de mim, havendo também quem suscite a contenda e o litígio. Por esta causa a lei se afrouxa, e a justiça nunca se manifesta; porque o ímpio cerca o justo, e a justiça se manifesta distorcida”. Aqui se apresenta um problema de agravo à Torá, pois ninguém deve queixar-secontra Deus, mas a Deus. Não se indaga o que significa tudo isso, pois sabe-se que é “para juízo” e para “correção”. (V. 12). Tão pouco se  indaga diretamente porque se permite que a maldade triunfe sobre o bem, mas se pergunta o resultado: “Até quando” a maldade assediará o justo e frustrará o seu propósito e por que, então, Deus não intervém?
         Contudo, naturalmente uma questão se apresenta: “Quais eram os males lamentados pelo profeta nestes versículos?” Seriam internos, isto, é, cometidos pelos hebreus contra os hebreus em Judá? Ou seriam os efeitos funestos de um inimigo que se aproximava ameaçando, de fora, como os caldeus? Existe uma diferença de opiniões, mas em vista do verso 13 é mais natural pensar na última. A iminente invasão ameaçadora dos caldeus produzia atrito, descontentamento e discórdia, depreciando as leis e provocando a anarquia, daí a razão do clamor de  Habacuque.
2. - A resposta de Javé - (Hc. 1:5-11). O verso 5 diz: “Vede entre os gentios e olhai, e maravilhai-vos, e admirai-vos; porque realizarei em vossos dias uma obra que vós não crereis, quando for contada”, usando um método drástico de levantamento dos caldeus para açoitar o seu povo. Estes versos contêm uma descrição muito gráfica do caráter e das conquistas dos caldeus, aquela “nação amarga e impetuosa, que marcha sobre a largura da terra, para apoderar-se de moradas que não são suas”. Nação que despojava os habitantes da terra, reunindo cativos como a areia do mar, zombando dos reis, capturando fortalezas, tomando cidades, a qual ousa divinizar a sua própria potência.
3. - O problema moral do profeta - (Hc. 1:12 a 2:1) - A resposta de Javé, mesmo reforçando a fé do profeta, cria um novo e mais sério problema moral, deixando- o perplexo: “Não és tu desde a eternidade, ó SENHOR meu Deus, meu Santo? Nós não morreremos. Ó SENHOR, para juízo o puseste, e tu, ó Rocha, o fundaste para castigar. Tu és tão puro de olhos, que não podes ver o mal, e a opressão não podes contemplar. Por que olhas para os que procedem aleivosamente, e te calas quando o ímpio devora aquele que é mais justo do que ele?” (vs. 12-13). Não há providência divina!  (v. 17). O problema de Habacuque penetra a significação moral da história e da experiência de Israel. É o problema da força dos maus contrastando com a humilhação dos justos. Haverá solução para esse enigma somente quanto aumentar a fé do atalaia. Porque ainda que ele veja o mundo ruindo ao seu redor, de repente é levado de volta a uma crença firme na providência divina: “Sobre a minha guarda estarei, e sobre a fortaleza me apresentarei e vigiarei, para ver o que falará a mim, e o que eu responderei quando eu for argüido” (Hc. 2:1).
4. - A resposta final de Javé - (Hc. 2:2-4). Parado sobre o atalaia, Habacuque não precisa esperar muito tempo  pela resposta de Javé. Recebe uma visão e lhe é ordenado: “...Escreve a visão e torna bem legível sobre tábuas, para que a possa ler quem passa correndo”. O cumprimento dessa mensagem está no futuro. Por isso Javé exorta: “Porque a visão é ainda para o tempo determinado, mas se apressa para o fim, e não enganará; se tardar, espera-o, porque certamente virá, não tardará”  (v. 3). A figura parece ser a de uma cidade entrincheirada contra a invasão do inimigo. O profeta sente que precisa defender um posto, guardar um baluarte. Deste ponto alto até o fim haverá a chave do enigma que o tem feito sofrer por tanto tempo e por ela Habacuque é inspirado a anunciar o grande princípio moral da verdadeira religião, isto é, o orgulho e a tirania não podem, pela sua própria natureza, perdurar. Porém os justos que continuarem fiéis hão de sobreviver: “Eis que a sua alma está orgulhosa, não é reta nele; mas o justo pela sua fé viverá” (v. 4). Em outras palavras, o futuro pertence aos justos e os que se alimentam de soberba e arrogância não têm futuro algum. Os caldeus são egoístas e por isso estão condenados. Os justo olham para Deus e por isso permanecem.
5. - Uma série de cinco castigos - (Hc. 2:5-20) - Numa série de cinco anátemas, as nações vencidas e escravizadas erguem a voz condenando os opressores caldeus (v. 5). A acusação de Habacuque faz lembrar as que foram proferidas por Naum contra Nínive. O profeta crê que aqueles que os caldeus têm fustigado por eles serão depois açoitados e que a tirania é um suicídio. Que os caldeus são criminosos e que a injustiça conduz, necessariamente, ao declínio de uma nação. Falando em nome das nações desoladas, ele amontoa sobre elas uma invectiva quadruplicada e sarcástica.
1ª. Ai daquele que ambiciona novas conquistas com o fim de ganhar despojos. Semelhante despojador será ele mesmo despojado e como saqueou, assim também será saqueado! (Hc. 2:6-8).
2ª. Ai daquele que só se agrada da ganância pessoal e procura engrandecer-se, tratando de assegurar apenas os seus próprios recursos, guardando-se contra as desgraças. Semelhante política é um suicídio e o que a favorece, no devido tempo, perde a sua própria alma!  (vs. 9-11).
3ª. Ai daquele  que oprime os outros sem escrúpulos, porque as cidades edificadas sobre a crueldade e a violência serão destruídas (vs. 12-14).
4ª. Ai daquele que barbaramente reduz um povo à completa impotência com o fim de gozar de sua condição de subjugador, porque com a medida com que mediu será também medido” (vs. 15-17).
5ª. Ai daquele que invoca loucamente os ídolos em busca de instruções. Porque a idolatria é tola e irracional e uma imagem esculpida não é senão um mestre da mentira (vs. 18-20) Javé reina!!!
6. - Uma Ode ou rapsódia - (cap. 3) - O terceiro capítulo de Habacuque é um dos mais lindos cantos de louvor do Velho Testamento. É ousado no conceito, sublime no pensamento, majestoso na dicção e puro na retórica. Ewald chama esse capítulo de “A Ode Pindárica de Habacuque”. Ele compreende naturalmente três divisões:
1ª. Uma oração na qual roga que Javé  avive a sua obra de livramento nesse tempo (Hc. 3:2).
2ª. Uma teofania – com Javé vindo a  Temã e Parã, como na antiguidade (vs. 3-15).
3ª. O efeito da maravilhosa aparição de Javé produzido sobre o profeta, a princípio só temor e suspensão, mas em seguida por calma e confiança repletas de gozo. (vs. 26-19).
         Esse poema, como os capítulos 1 e 2, foi escrito numa época de crise nacional, quando a terra estava sendo ameaçada de invasão (Hc. 3:16). Seu sentimento concorda admiravelmente com o das profecias não disputadas dos capítulos 1 e 2 de Habacuque. Nessas profecias ele começa o mistério da interrogação (Hc. 1:2). No canto ele conclui com certeza e afirmação (Hc. 3:19). O mesmo tom e caráter sublimes se complementam. O canto suplanta a mensagem do profeta, sendo o propósito de ambos animar e conservar vivo dentro da nação o espírito de esperança e de confiança em Deus. Por conseguinte, ele representa Javé como vindo envolto em tronos e nuvens, a partir de sua morada nas montanhas do deserto, para livrar o seu povo dos inimigos deste. A teofania é somente para a salvação e livramento de Israel (v. 13) [profetizando o que acontecerá, quando o verdadeiro Messias de Israel – Jesus Cristo - vier em toda a sua glória, sobre as nuvens, a fim de libertar o seu povo dos inimigos, na batalha do Armagedom.] O argumento de Habacuque é que Aquele que tão maravilhosamente livra o seu povo na juventude, jamais há de abandoná-lo em anos futuros. Tendo Javé operado a redenção de Javé nos dias de Moisés e dos Juízes, há de voltar a fazer o mesmo, naquela crise atual. Por isso o profeta aguarda uma nova parusia de Javé, uma revelação de sua Pessoa, e uma repentina exposição de sua glória para a salvação do seu povo. E nessa expectação de fé, o profeta conclui com uma absoluta e ilimitada confiança em Deus, afirmando enfaticamente que ainda todos os sinais visíveis do seu amor venham faltar e ele fique reduzido à pobreza e à penúria, mesmo assim ele se alegrará no Deus de sua salvação: “Porque ainda que a figueira não floresça, nem haja fruto na vide; ainda que decepcione o produto da oliveira, e os campos não produzam mantimento; ainda que as ovelhas da malhada sejam arrebatadas, e nos currais não haja gado; Todavia eu me alegrarei no SENHOR; exultarei no Deus da minha salvação (vs. 17-18).
O Salmo 77:15-20 poderia ter exercido influência na composição deste belo poema. É verdade que o salmista mostra sinais de haver pertencido a um tempo e a um hinário da comunidade judaica... Contudo, por não ter paralelo com outros livros proféticos, não é preciso concluir-se que Habacuque tenha composto este poema inspirado no Salmo 77, visto como os capítulos 1 e 2 do seu livro provam suficientemente que ele foi,  de fato,  um poeta!
V - Ensino permanente - Habacuque se contenta em anunciar apenas uma grande verdade, porém de maneira tão magistral que esta não somente chega a ser o tema do Judaísmo como também do Cristianismo evangélico - a doutrina da justificação pela fé. (Hc. 2:4). Não foram Paulo, Agostinho e Lutero que ensinaram pela primeira vez este grande princípio. Foi Habacuque quem o fez, às vésperas da invasão de Judá pelos caldeus. Este tema pode ser desenvolvido em vários componentes:
1º. O fato da disciplina divina - O enigma constante do Velho Testamento “não é a sobrevivência do mais idôneo, mas o sofrimento do melhor”. Em Jó foi o sofrimento de um indivíduo, em Habacuque, o de uma nação.
2º. O fato de que o mal se destrói a si mesmo - Com uma visível arrogância, os caldeus estavam cegos quanto ao fato de que eles eram apenas a vara da disciplina de Javé contra o seu povo. Jeremias e Habacuque foram contemporâneos. Jeremias ensinou que a maldade é condenada no próprio povo de Deus. Habacuque ensinou que a maldade dos caldeus também é condenada. A tirania sempre carrega em seu bojo as sementes da própria destruição [Um exemplo moderno é o de Sadam Hussein].
3º. O fato de que a fé é a condição da vida - “O justo viverá pela fé”. Este é o grande ensino de Habacuque. Nele o profeta fez uma contribuição muito original e significativa à teologia global. A fé, no conceito do profeta, significava mais que uma simples confiança. A forma é um abstrato feminino “emunah”  dando a idéia, conforme permite o  uso da palavra em outras partes do Velho Testamento: (Êxodo 17:12; Isaías 36:6; 2 Reis 7; 1 Crônicas 9:22,26; Provérbios 12:17), do caráter que a fé produz, isto é, fidelidade, firmeza, sofrimento, persistência, paciência e também lealdade.  E “a vida”, segundo Habacuque, não significa uma mera prosperidade nacional, mas a segurança moral, mesmo em meio à calamidade. Em outras palavras, uma fé viva determina o destino: permanecendo em vida e sobrevivendo ao juízo. Habacuque, como um filósofo, percorreu todo o caminho: desde a dúvida até a fé sublime. Esta passagem de Hc. 2:4 é citada três vezes no Novo Testamento (Romanos 1:17; Gálatas 3:11 e Hebreus 10:37).
         Habacuque ensina ainda outras lições importantes em seu livro:
1. - A vaidade da violência - “Não és tu desde a eternidade, ó SENHOR meu Deus, meu Santo? Nós não morreremos. Ó SENHOR, para juízo o puseste, e tu, ó Rocha, o fundaste para castigar” (Hc. 1:12).
2.  -  O valor em tempo de crise - Habacuque exorta implicitamente os seus leitores a terem valor e serem felizes. Ele exorta a alma despojada de toda posse exterior a ser valorosa e feliz em Deus, como o único  objeto de confiança. Aparentemente isso era inerente e, portanto natural, porque ele possuía uma confiança sempre repleta do gozo de que o Senhor iria trazer salvação ao seu povo.
The Tweve Minor Prophets”, George L. Robinson
Publicado por George H. Doran Co, New York, 1926
Traduzido por Mary Schultze, março/abril 2004
Citações bíblicas da Bíblia Revisada FIEL de Almeida

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